Desde 2009, quando julgou o Habeas Corpus de número 84.078, o Supremo
Tribunal Federal (STF) estabeleceu que a execução provisória de
decisão condenatória criminal é inconstitucional, à luz do art. 5º
LVII da Constituição Federal, segundo o qual “ninguém será
considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal
condenatória”. Na prática, isso significa reconhecer que ninguém pode
ser preso simplesmente porque houve uma decisão condenatória recorrível,
seja de 1ª ou se 2ª instância.

Há alguns meses, porém, durante o julgamento do Habeas Corpus 126.292, o STF mudou seu entendimento e passou a admitir a prisão como consequência de uma
decisão condenatória proferida ou confirmada em 2ª instância, ainda que
recorrível.

A Constituição é clara em seu artigo 5º, LVII. Não havia, e não há,
uma questão jurídica e constitucional a ser solucionada pelo Habeas Corpus 126.292.
Esse dispositivo não precisava de nova interpretação. Não gera dúvida
nenhuma. O problema era de conveniência, em razão de uma nova e pequena
freguesia do nosso sistema prisional. De repente, o que está escancarado
na Constituição, e valia desde o julgamento do Habeas Corpus 84.078, em 2009,
tornou-se inconveniente.

Se a intenção do STF era oferecer alguma satisfação à sociedade, o
Supremo não precisava passar por cima da Constituição. Bastaria que os
ministros olhassem para a superpopulação carcerária brasileira.

Segundo o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) há no Brasil, hoje, 660 mil
presos. Desses, 243 mil, ou 36,8%, são provisórios, ou seja, cidadãos e
cidadãs que ainda não foram condenados em primeira instância. E essa
informação é incompleta. Falta saber quantos foram condenados e ainda
estão recorrendo. E falta saber quantos têm condenação transitada em
julgado e estão realmente cumprindo pena.

Certamente, o número de presos em flagrante ou que estão cumprindo
prisão preventiva – antes, portanto, do julgamento em primeira
instância – supera os 243 mil encarcerados provisórios. Frequentemente,
esses cidadãos ficam presos até o trânsito em julgado da condenação e
passam direto para o cumprimento da pena. Muitos cumprem pena antes do
trânsito em julgado da condenação.

Ainda que seja possível e adequado rever nosso sistema de recursos, o
problema não está nas leis. Os problemas são a lentidão e a
ineficiência com que o Poder Judiciário conduz e gerencia seus processos.

É comum ouvir dos leigos que a demora nos processos é culpa dos
advogados. Não é verdade. O advogado sempre cumpre os prazos processuais.
A causa da lentidão é a má gestão judicial e cartorária. O que atrasa
a tramitação é o tempo que o processo fica parado, seja no cartório,
seja com os demais sujeitos da relação processual. A condução dos
processos no Brasil segue a norma dos serviços públicos. Com raras
exceções, a gestão pública é desestruturada e ineficiente.

A cadeias brasileiras sempre estiveram – e continuam – lotadas de
presos processuais, aqueles que estão encarcerados antes de haver
trânsito em julgado de sentença penal condenatória. Foram presos em
flagrante, tiveram prisão preventiva decretada, e a decisão foi mantida
na sentença condenatória. Esses cidadãos estão presos indevidamente.
Deveriam ser soltos imediatamente, e assim permanecerem até a decisão em
2ª instância. Ou então, o STF e os demais Tribunais deveriam conceder
aos demais réus o mesmo tratamento dispensado aos tradicionais clientes da
Justiça Criminal.

Quem conhece o sistema penitenciário e atua na execução penal sabe que a
discussão sobre ser ou não cabível execução provisória é inócua.
Está escrito no parágrafo único do art. 2º da Lei de Execução Penal
(Lei n°7210/84) que o preso provisório tem os mesmos direitos do preso
condenado. Na prática, considerando que a esmagadora maioria dos réus
responde preso ao processo inteiro, são os próprios réus e seus
defensores que pedem pela execução provisória, para poder progredir de
regime, para ganhar livramento condicional. Do contrário, dada a
morosidade da Justiça brasileira, cumprem toda a pena ou boa parte dela em
regime fechado, em violação ao direito, em excesso em execução.

Podemos discutir se nossas leis penais e processuais penais são boas ou
ruins, se nossa lei de execução penal é adequada ou não, em termos de
política criminal. Podemos discutir se a Constituição está certa ou
errada ao definir que as pessoas só podem cumprir pena depois do trânsito
em julgado da sentença condenatória. Mas não é possível aceitar a
violação do sistema jurídico posto; não é possível aceitar esse
afrouxar, apertar, torcer e contorcer das regras do jogo, conforme os
humores da opinião pública e as convicções de cada julgador.

Se houver motivo processual, o cidadão pode ser preso em várias fases. Em
flagrante, na fase de inquérito, em 1ª ou em 2ª instância, enquanto
recorre aos tribunais superiores. Sem motivo processual (e estes motivos
estão previstos no Código de Processo Penal), o cidadão brasileiro só
pode ser preso após o trânsito em julgado de decisão condenatória.

Se houver motivo para prisão processual, e se essa se prolongar, como em
geral se prolongam as prisões neste País, o preso tem direito a gozar dos
institutos da Lei de Execução Penal. Ele tem direito à execução
provisória; que é cumprir provisoriamente a pena fixada na 1ª ou na 2ª
instância, e até o desfecho dos recursos nos tribunais superiores, para
que não se agrave ainda mais o abuso decorrente da morosidade judiciária.

Dada a ordem jurídica vigente e considerando que cerca de 25% dos recursos
criminais que chegam ao STF são acolhidos em favor dos réus, como afirmou
o Ministro Celso de Mello, Decano do STF, durante o julgamento do HC
126.292, é inadmissível pensar que as pessoas possam ser presas
automaticamente, simplesmente porque sobreveio decisão de 2ª instância.
Isso é execução provisória ilegítima. Quem esteve livre durante todo o
processo, sem um motivo legal que justifique a prisão processual, livre
deve permanecer até o trânsito em julgado da sentença penal
condenatória.

É também inadmissível deixar centenas de milhares de pessoas presas
durante todo o processo e achar que o problema apareceu agora, com a
prisão dos réus mais favorecidos e que em geral respondem soltos ao
processo.

A Justiça criminal é tendencialmente seletiva. É o espelho mais
incômodo da sociedade. Quanto mais conflitiva e menos igualitária a
sociedade, mais seletivos são a Justiça Criminal e o sistema prisional a
ela atrelado. As cadeias brasileiras, adequadamente descritas como
medievais por um ex-ministro da Justiça, estão abarrotadas de pessoas
pobres. Ainda que sejam culpadas, ou que assim venham a ser declaradas,
elas sofrem constrangimento ilegal decorrente do prolongado encarceramento
cautelar, preventivo, processual.

A pretensão de lotar ainda mais o sistema penitenciário brasileiro, que
já têm um déficit de 260.000 vagas, é uma escolha no mínimo ingênua,
em termos de política criminal. E é também inconstitucional.

Beatriz Dias Rizzo é advogada criminal; ex-procuradora do Estado;
coordenadora da Assistência Judiciária no Centro de Observação
Criminológica, no presídio de Parelheiros, na Coordenadoria dos Distritos
Policiais da Capital, e mestre em Ciências Criminais pela Faculdade de
Direito da Universidade de Coimbra.

As opiniões e informações expressas neste artigo são de total responsabilidade da autora e não refletem posicionamentos e apurações da Agência Nossa.