Enquanto D.L, então com 30 anos, deixou a rua para viver num quarto alugado, M.Z, 38, fez da mesma calçada sua nova morada. O deteriorado mercado de trabalho brasileiro é porta de entrada e saída da miséria para os dois que vivem caminhos opostos. E para tantos outros que já foram ou acabaram de se tornar sem-teto.

M.Z trabalhava como assistente de cozinha em um dos hospitais do Rio abatido pela crise. O governo estadual deixou de pagar fornecedores, inclusive a empresa terceirizada que o empregava. Não teve outra alternativa se não morar na rua.

“Sou mais uma vítima de governante ladrão”. É na rua que ele toma banho e se arruma para conseguir sobrevivência, entre um bico e outro.

No caminho inverso, D.L trabalha durante a semana como assistente em uma pensão da região metropolitana do Rio. Às sextas, emenda o serviço como garçom num restaurante das redondezas. Conseguiu emprego há quase um ano e desde então pode pagar pela moradia, após sete longos anos vivendo nas ruas da cidade que impõe à população um dos aluguéis mais caros do País.

Além dos amigos que dividem a mesma calçada para dormir e compartilhar o pouco que possuem, D.L. e M.Z. têm a percepção de abandono pelas autoridades.

Nos últimos anos, as ruas da capital e cidades vizinhas do Rio ficaram lotadas de gente que não tem para onde ir. O estado foi severamente atingido pela crise e o aumento do desemprego é um dos maiores do País.

A desocupação saltou de 6,8% para 14,8% em apenas três anos. A extrema pobreza cresceu cerca de 25% em 2017.

O morador de rua A.M. capricha na pintura do carrinho para atrair a clientela

Não há dados atualizados para dimensionar a população de sem-teto mas a simples observação permite concluir que o número de pessoas dormindo nas ruas cresceu consideravelmente em algumas cidades da região metropolitana do Rio, sobretudo no centro da capital e na vizinha Niterói, onde a crise da indústria naval extinguiu milhares de empregos.

O Índice de Desenvolvimento Municipal da Firjan (IFD-M) mostra piora na qualidade de vida de Niterói nos últimos anos, deixando para trás a condição de “alto desenvolvimento” para “desenvolvimento moderado”. A cidade ficou em 9o lugar no estado do Rio na última edição do estudo. Em 2014, ocupava segundo lugar. No último ano apurado a avaliação do município piorou em todas as variáveis consideradas no cálculo do indicador, inclusive saúde, educação e emprego.

Diante do crescimento expressivo da população de rua, a administração municipal surpreendeu mesmo seus aliados ao fazer campanha contra esmola. Panfletos foram distribuídos pelas ruas da cidade, inclusive nos pontos de ações humanitárias, segundo relatos de voluntários.

“Esse folder é um absurdo, criminaliza quem precisa de ajuda, ao orientar a não dar ajuda. A rua não é lugar para ninguém, mas infelizmente às vezes se torna mais acolhedor que ao lado da família, muitas vezes por intolerância”, afirma a deputada federal (PSOL), Talíria Perone. Ela ocupava até o final do ano passado a presidência da Comissão de Direitos Humanos da cidade.

Lucas, 24 anos, é exemplo exato do que cita a ex-vereadora de Niterói. Desmaiou de fome na rua, na frente desta reportagem, após dias sem comer. Ele conta ter sido expulso de casa pela mãe, que não teria aceitado sua opção sexual. Assistentes sociais chegaram a ir a sua casa convencer a mãe a aceitá-lo, sem sucesso.

Na principal avenida da cidade, mais de 70 pessoas dormiam nas calçadas em uma noite de maio. Muitos se levantavam ainda de madrugada para trabalhar. Recebem salário mas não o suficiente para arcar com os custos de moradia. Um quarto e sala sobre as largas marquises que lhes servem de teto, por exemplo, não sai por menos de R$ 800 com condomínio e IPTU.

Perto dali, o ambulante A.M capricha na pintura do carrinho. Ele quer fazer da arte um ponto de atração para a venda de seus produtos. O maior sonho é ter dinheiro para voltar para casa e cuidar da família novamente. Por enquanto ele não consegue viver apenas do trabalho e conta com esmolas para se alimentar.

A Prefeitura de Niterói informou que adota uma série de medidas inclusivas para reinserir moradores de rua em atividades profissionais e educativas. Foi criada a Lei dos 3%, que destina este percentual das vagas em serviços e obras públicas de Niterói a moradores de rua.