Damião Cruz dos Reis deixou Governador Valadares (MG) para trabalhar como pedreiro na região metropolitana do Rio. Adquiriu pancreatite, doença crônica que agora o impede de exercer sua profissão, porque não consegue mais – nem pode – pegar peso. Ganha a vida como catador de lixo e se tornou morador de rua.

Com a quarentena imposta pelo coronavírus, ele  precisa do auxílio emergencial do governo federal  Mas sem celular nem endereço, ele e outros milhares de pessoas sem teto não conseguem fazer o cadastro exigido pelo governo para conseguir o benefício.

Até SMS (mensagens de texto pelo celular) são exigidos no processo de inscrição dos moradores de rua.

Nesta reportagem de uma série que a Agência Nossa publica sobre os impactos do coronavírus entre os mais vulneráveis, denunciamos problemas enfrentados pelos sem-teto para conseguir auxílio emergencial.

A Pastoral do Povo da Rua, em São Paulo, elaborou um relatório com os obstáculos que pessoas sem moradia estão encontrando para conseguir o auxílio emergencial. Logo eles, os mais necessitados da sociedade.

O documento foi enviado à  comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), à Defensoria Pública do Estado de São Paulo e a membros do Ministério Público e do  Tribunal de Justiça do estado. 

Para começar, a inscrição no Cad Único exige número de endereço fixo, o que os sem-teto não possuem.  Também limita o uso do número de celular a um único cadastro, impossibilitando citar o número de outra pessoa da família ou mesmo de amigos que possam ajudar.

E sem celular também não é possível concluir a inscrição, pois o cadastro exige um código enviado por SMS.

Sem falar a imensa parcela da população de rua que perdeu documentos e não conseguiu tirar segunda via para fazer o cadastro. A Pastoral está pedindo ao governo a liberação de novos RGs.

Não há nenhuma opção no cadastro que permita especificar que a pessoa está “em situação de rua”, explica a advogada da Pastoral Juliana Hashimoto.

A Secretaria de Assistência Social da Prefeitura do Rio informa que realizou uma reunião com a Superintendência da Caixa Econômica Federal para solicitar a flexibilização da obrigatoriedade de fornecer número de celular para a validação da conta digital. A flexibilização é solicitada para moradores de rua.

“Aguardamos a resposta do órgão. Importante salientar que este tem sido um entrave apontado por diversos municípios pelas mesmas razões”, afirmou a Prefeitura do Rio em resposta à Agência Nossa.

Coordenador da Pastoral Povo da Rua, o padre Júlio Lancelotti conta que a entidade iniciou no dia 8 de abril um serviço de auxílio para a realização do cadastro para pessoas sem moradia. Com forte atuação em defesa dos marginalizados, ele lamenta que o serviço não consegue atender a todos.

“O que seria ideal é que centros de convivência, de acolhida fizessem o cadastramento também, ou os centros Pop. O próprio MP pediu isso mas eles não estão fazendo”.

Padre Júlio Lancellotti coordena a Pastoral Povo na Rua

O Ministério Público de São Paulo (MPSP) recomendou aos municípios do estado que os centros de acolhimento e atendimento sejam implementados com computadores para apoiar as pessoas de rua no cadastro.

“Enviamos um ofício no começo da semana e ainda não tivemos resposta”, disse à Agência Nossa a Promotora de Justiça de Direitos Humanos Ana Trotta.

Outra recomendação que o MPSP fez ao governo do Estado e à Prefeitura de São Paulo foi o repasse de verba para assistência social, para suprir a demanda destes serviços.

“Até o momento a verba está concentrada na área da saúde, mas é preciso fortalecer a assistência social para ajudar as pessoas em situação vulnerável”, completou.

Somente em São Paulo são cerca de 30 mil sem-teto. Na cidade do Rio não existe uma estimativa atualizada, mas a Defensoria Pública estimou recentemente 15 mil pessoas sem moradia. Nos dois casos, as vagas de abrigos não dão conta da população sem moradia, embora as prefeituras tenham ampliado esforços para criar mais vagas após o começo da pandemia.

Os centros de atendimento já não davam conta de ajudar a população antes do coronavírus, e com o aumento das necessidades, não têm suprido a carência, como relatam tanto pessoas que continuam nas ruas quanto moradores de abrigos.

“Não existe uma política efetiva para pessoas de rua. O coronavírus trouxe à tona a ausência de uma política e a fragilidade que as pessoas de rua estão expostas. Aqueles que não conseguiram vaga nos equipamentos (abrigos) estão nas ruas dependendo de doações”, coordenador do Movimento Nacional da População de Rua, Darcy Costa.

Segundo ele, os Centros de Referência de Assistência Social (CRAS) das prefeituras não têm dado assistência para este serviço e moradores de rua não estão conseguindo se cadastrar. “É algo muito burocrático. Nos próprios CRAS, Centro Pop ou nas casas de acolhimento deveria ser instaurado um serviço de assistência social que abordasse os moradores e verificasse se são cadastrados no Cad Único, mas isso não ocorre”.

De acordo com estudo da Casa Fluminense, a realidade é que a rede de centros de referência em alguns municípios da Região Metropolitana do Rio de Janeiro está operando muito acima da sua capacidade.

Com base em dados atualizados do Ministério da Cidadania, nas cidades de Nova Iguaçu e Rio de Janeiro há menos da metade dos centros de referência de assistência social necessários para atender as famílias residentes. As unidades em São João de Meriti, Duque de Caxias e São Gonçalo também estão operando acima da capacidade.

“A Norma Operacional Básica do SUAS estabelece até 5.000 famílias por centro de referência. Contabilizando as unidade de CRAS de cada município da Região Metropolitana do Rio de Janeiro e dividindo pelo número de famílias inscritas, chegamos ao número de 12.723 famílias por unidade de CRAS em Nova Iguaçu, e 11.453 no Rio de Janeiro”, explica Vitor Mihessen, coordenador da pesquisa dos Infográficos da Desigualdade da Casa Fluminense.

“Pouco antes da eclosão da Covid-19 já se denunciava a existência de uma fila de espera de um milhão de famílias com perfil de atendimento do Programa Bolsa Família. Acrescente-se a isso a exclusão, nos últimos 3 anos, de cerca de 500 mil com perfil de alta vulnerabilidade. O orçamento do programa foi reduzido de R$ 32,5 bilhões, em 2019, para R$ 30 bilhões, em 2020”, retrata um apelo documentado por 140 entidades civis por medidas de apoio a populações mais vulneráveis.

Assinadas por fóruns, redes, articulações, movimentos e organizações da sociedade civil, as proposições incluem a criação de comitês de Emergência para o Combate à Fome e medidas que passam pelo fortalecimento da agricultura familiar, pelos caminhos de distribuição de alimentos para as populações mais vulneráveis, por programas como o Bolsa Família e o Benefício de Prestação Continuada (BPC).

O documento também lembra da extinção do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea) e a drástica extinção de programas sociais. Em 2014, a Secretaria Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional geria um orçamento de R$ 2,5 bilhões, tendo passado a dispor de apenas R$ 447 milhões em 2019.

Em Niterói, a Prefeitura foi ágil nas medidas de combate ao coronavírus, com desinfecção nas comunidades carentes e outras ações emergenciais como a distribuição de cesta básica e renda mínima para a população afetada pela quarentena. Porém, moradores de rua se queixam da falta de atenção das autoridades locais. É o caso de Damião, que citamos no começo desta reportagem.

Ele conta que procurou um centro de atendimento e pediu segunda via de documentos em fevereiro, antes do coronavírus ser percebido como ameaça no Brasil.

A Prefeitura de Niterói respondeu que o serviço de abordagem à população em situação de rua foi intensificado e que as rondas acontecem 24 horas por dia em todas as regiões da cidade. A Prefeitura arrendou um hotel para abrigar para que 70 pessoas em situação de rua possam cumprir o isolamento social. E 46 já estão instalados.

Damião por enquanto não teve a mesma sorte. Segue sem identidade, sem ajuda, invisível nas ruas de São Domingos.