O governo extinguiu oficialmente nesta semana o Programa Bolsa Família, criado em outubro de 2003 pelo governo Lula. Por meio da Medida Provisória (MP) 1.061/2021, o presidente Bolsonaro instituiu o Programa Auxílio Brasil, considerado pelo governo como um substituto ao antigo programa. E apesar do novo projeto continuar atendendo às 14,5 milhões de famílias assistidas pelo Bolsa Família, especialistas alertam sobre as limitações do novo benefício: trata-se de um programa financeiro e não social.

O pagamento da nova transferência de renda que substituirá o Bolsa Família começou nesta quarta-feira (17), coincidindo com o fim do Auxílio Emergencial, programa lançado no ano passado para apoiar famílias vulneráveis durante a pandemia. E apesar de continuar tendo como alvos as famílias em situação de pobreza e de extrema pobreza, o Auxílio Brasil deixa de lado atuações consideradas importantes para a promoção da cidadania e foca apenas no pagamento do subsídio.

“A diferença entre os dois projetos é enorme. O Bolsa Família é um programa social permanente, já o Auxílio Brasil é um ajuda financeira pontual. O Bolsa Família envolve diversas dimensões da vida, como por exemplo a saúde, a educação, a preparação para a saída do programa e para a entrada no mercado de trabalho, além da dimensão do auxílio financeiro que é transformada em compra de alimentos. Esse Auxílio Brasil é algo com data marcada, finalizando em 2022, e só tem a dimensão do financeiro, não é um programa social”, explica o professor de economia e ex-diretor do IPEA, João Sicsú.

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No Bolsa Família, as famílias cadastradas para receber o benefício precisavam obedecer a condicionalidades para receber. Na área de saúde, as crianças menores de 7 anos precisavam cumprir o calendário de vacinação e realizar acompanhamento do estado nutricional (peso e altura) e as gestantes deveriam realizar o pré-natal. Na área de educação, as crianças, adolescentes e jovens precisavam frequentar a escola e cumprir uma frequência escolar mensal mínima.

De acordo com os termos apresentados pelo Ministério da Cidadania, o Auxílio Brasil continuaria com as mesmas condicionalidades do Bolsa Família. Porém, segundo nota à imprensa publicada no último dia 12, o Ministério disse que “a vacinação infantil é importante ferramenta para o desenvolvimento saudável das crianças e não é requisito para o pagamento do auxílio”. 

Vale lembrar que o Ministério da Cidadania, em portaria publicada no começo de outubro, quando ainda existia o Bolsa Família, suspendeu por 180 dias as aplicações dos efeitos decorrentes do descumprimento das condicionalidades, justificando ser necessário evitar aglomerações e o prejuízo na operação do programa e do Cadastro Único por conta da pandemia.

Fim das contrapartidas para saúde e educação?

Por essa e outras, o economista João Sicsú considera não ter como comparar os dois projetos, uma vez que o Bolsa Família tem uma amplitude que o Auxílio Brasil não abarca. E mesmo o novo pagamento sendo necessário, uma vez que ele ajuda pessoas em vulnerabilidade, não há uma possibilidade de comparação.

“Não podemos chamar o programa de novo Bolsa Família. Ele está enterrando o Bolsa Família. O novo valor que eles estão propondo é apenas uma correção monetária, não tem nenhum aumento. E esse programa não tem contrapartidas. Ele se chama auxílio justamente porque ele é pontual. É na verdade uma doação de recursos para os carentes comprarem alimentos”.

No Auxílio Brasil, as famílias com renda per capita de até R$ 100 passaram a ser consideradas em situação de extrema pobreza e as com renda per capita de até R$ 200 passaram a ser consideradas em condição de pobreza. No Bolsa Família, os valores eram, respectivamente, de R$ 89 e de R$ 178 por pessoa. O valor médio que anteriormente era de R$ 189 com o Bolsa Família, passou para R$ 217,18 com o novo auxílio, uma alta de 17,84%.

Governo Bolsonaro está enterrando o Bolsa Família, diz João Sicsu. Foto: Ministério da Cidadania

Diante do aumento da pobreza no País, acredita-se que a fila do Auxílio Brasil cresça e que nem todos consigam ser atendidos. Questionamos a João Sicsú, se, em um cenário em que o Brasil enfrenta uma grave crise econômica com orçamento está apertado, aumentar o valor do benefício não deixaria mais pessoas de fora.

Para o ex-diretor do Ipea, isso não é uma restrição válida para esse tipo de política pública. Ele considera o controle de beneficiários algo extremamente dramático, já que em um momento emergencial tem pessoas precisando e que não vão receber.

“A quantidade de pessoas que vai ser atendida não depende de nenhuma restrição orçamentária do governo. É uma decisão que está em outra esfera, na esfera política, na esfera de algum raciocínio econômico. Quando você diz que vai ter restrição orçamentária você diz ao mesmo tempo que tem gente que vai morrer de fome, e um programa como esse não pode ter limitação”, diz Sicsú. 

Governo promete fim da fila

O governo Bolsonaro anunciou que a fila de espera para a inclusão no Auxílio Brasil será zerada. Atualmente, mais de 2 milhões de famílias aguardam na fila para receber o benefício. Porém acredita-se que esse número cresça, uma vez que, desde abril, o Ministério da Cidadania não analisa mais os cadastros que poderiam se encaixar no Bolsa Família. Além disso, o fim do auxílio emergencial pode colocar mais pessoas na espera.

O professor de economia João Sicsú explica que é quase impossível acabar com a fila de espera para fazer parte do programa de transferência de renda, e que na verdade o grande desafio é agilizar a entrada e fazer com que as pessoas que já estão no programa não precisem mais receber o benefício.

“Alguma fila vai sempre existir. A questão é que a fila tem que diminuir por dois movimentos: um movimento do programa ser mais ágil e outro das pessoas não precisarem mais do programa. A gente não pode achar que todas as pessoas que estão desempregadas, que estão sem renda, vão pro Bolsa Família. Precisamos entender que o auxílio é capaz de alcançar uma parcela desses necessitados, mas que é preciso também que haja geração de empregos para atingir uma outra parcela”, esclarece João.

Sicsú ressalta que embora tenha havido diversas dificuldades dentro do programa, esses impasses são na verdade um espelho do sucesso e não do fracasso do Bolsa Família.

“Existia uma fila de espera e também uma fila de saída. Tinha realmente essa necessidade que não era de fácil operacionalização, já que o Bolsa Família tinha como objetivo último que as pessoas saíssem do programa em um momento que não fosse mais necessário. E isso que é o sucesso do programa, quando alguém entra e sai quando não precisa mais”.

Auxílio não depende da PEC dos Precatórios

A pedido do presidente Jair Bolsonaro todas as famílias classificadas em situação de pobreza e de extrema pobreza, vinculadas ao Cadastro Único dos Programas Sociais (CadÚnico) e ao Sistema Único de Assistência Social (SUAS), deverão receber um valor mínimo de R$ 400 dentro do novo auxílio.

Porém o Ministério da Economia condiciona o pagamento do valor de R$ 400 prometido à aprovação da PEC dos Precatórios, proposta de emenda à Constituição que permite o parcelamento de precatórios por até dez anos e muda o cálculo do teto de gastos.

O economista João Sicsú vê essa alegação como uma mentira do governo, já que além do auxílio representar um baixo valor comparado ao pagamento dos precatórios, se tem outras saídas para se arrecadar e transferir renda para os brasileiros que estão em situação de pobreza.

“Isso aí é uma falácia. Não é verdade que é preciso da PEC dos Precatórios para pagar esse auxílio. Esse benefício representa uma parcela ínfima ao que eles deixariam de pagar com a PEC. É uma mensagem que não passa com toda clareza como é a contabilidade financeira de um governo. É óbvio que o governo tem dinheiro. Ele arrecada tributos, ele pode se endividar e ele pode emitir dinheiro”, expõe o ex-diretor do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada.

Bolsa Família ainda pode retornar

Para valer de forma definitiva, a Medida Provisória (MP) 1.061/202, que instituiu o Auxílio Brasil, precisa ser aprovada pelo Congresso até o dia 7 de dezembro, 120 dias após a edição do decreto. Caso a medida provisória não seja aprovada até o prazo necessário, caberá ao Congresso editar uma resolução definindo os efeitos da extinção da MP, com chances de restituir o Bolsa Família.

João Sicsú, que já foi diretor de estudos macroeconômicos do Ipea, defende que apesar do Auxílio Brasil ser importante para ajudar no combate à fome, que está batendo à porta de inúmeros brasileiros, o País precisa de mais que uma simples transferência de renda para se organizar e prosperar.

“O Bolsa Família tinha uma dimensão de orientação das famílias, por exemplo, com a facilidade para as pessoas tirarem carteira de trabalho, com a obrigação dos filhos frequentarem a escola, terem matrícula e frequência, com a necessidade das mães fazerem os exames ginecológicos anuais para receber o benefício. Ele tinha uma dimensão social que o novo projeto não tem. Quem estava no Bolsa Família estava para ser um cidadão ativo. Era um programa de organização da sociedade”, finaliza o especialista.